Chegou o momento de realizar. Não podemos passar a vida só a aprender e a preparar. Além de que, aprender e preparar exigem uma dose de preparação: para encontrar um caminho é preciso enveredar por ele. A vida decorre em círculo. Órgão, que se exerce, cresce e fortifica-se; órgão fortificado exerce-se mais vigorosamente. É preciso escrever ao longo da vida intelectual. Escrevemos primeiramente para nós, para ver claro nos nossos casos, para determinar melhor os pensamentos, para suster e avivar a atenção que depressa esmorece se não for instigada pela ação, para estimular as pesquisas necessárias para levar a cabo a produção, para reanimar o esforço que se cansaria não vendo os resultados, enfim para formar o estilo e adquirir um valor que completa todos os outros valores: a arte de escrever.
Escrevei e publicai, desde que juízes competentes vos julguem capazes disso e desde que vos sintais aptos para voar. O pássaro sabe muito bem quando há-de lançar-se no espaço; melhor do que ele o sabe a mãe; apoiado em vós e numa prudente maternidade espiritual, voai logo que puderdes. O contacto com o público obriga o escritor a constante trabalho de aperfeiçoamento; os louvores merecidos animam-no; as críticas fiscalizam-no; ser-lhe-á, por assim dizer, imposto o progresso, em vez da estagnação que pode resultar do perpétuo silêncio. A paternidade espiritual é sementeira de bens. Toda obra é manancial.
O P. Gratry insiste muito na eficácia da escrita. Quer que se medite sempre com a pena na mão e que a hora pura da madrugada seja consagrada a este contacto do espírito consigo próprio. Devem tomar-se em consideração as disposições pessoais; mas é certo que, para a maior parte, a pena, que corre, desempenha o papel do treinador nos jogos desportivos. Falar, é ouvir a alma e, nela a verdade; falar solitária e silenciosamente por meio de escrita, é ouvir-se e sentir a verdade com a frescura de sensação dum homem matinal que ausculta a natureza logo ao despontar do dia.
Em todas as coisas, é preciso começar: ? o começo é mais que metade duma coisa? , disse Aristóteles. Quem não produz, habitua-se à passividade; o medo de orgulho ? porque o orgulho também gera o medo ? ou a timidez aumentam mais e mais; recuamos, cansamo-nos de esperar, tornamo-nos improdutivos.
A arte de escrever, dissemos, exige a longa e precoce aplicação que paulatinamente se converte em hábito mental e constitui o que se chama o estilo. O meu ?estilo? , a minha ?pena? , é o instrumento espiritual de que me sirvo para me dizer e dizer a outrem o que ouso da verdade eterna; é qualidade do meu ser, vinco interior, disposição do cérebro animado, sou eu envolvido de certo modo. ?O estilo é o homem? .
O estilo forma-se, escrevendo; o mutismo diminui a personalidade. Se quereis ser alguém, intelectualmente, precisais de saber pensar alto, pensar explicitamente, isto é, formar, dentro e fora de vós, o vosso verbo. Chegou a ocasião de dizer em breves palavras o que deve ser o estilo para corresponder aos fins sugeridos aqui ao intelectual. Seria prudente não escrever, para ousar dizer como se escreve. A humildade não oferece dificuldade, quando diante de Pascal, La Fontaine, Bossuet, Montaigne, se sofreu a influência dum estilo superior. Pelo menos ficamos conhecendo o ideal a que visamos e não alcançamos. Podem-se explicar as qualidades do estilo em tantos artigos quantos se quiser; tudo, porém, creio eu, se resume em três palavras, verdade, individualidade, simplicidade, a não ser que se prefira sintetizar nesta única frase: escrever verdade. O estilo é verdadeiro quando corresponde a uma necessidade do pensamento e quando se mantém em contacto íntimo com as coisas. O discurso é ato de vida: não deve representar um corte na vida. É o que sucede quando caímos no artificial no convencional; Bergson diria no tout fait. Escrever por um lado, e por outro viver vida espontânea e sincera, é ofender o verbo e a harmoniosa unidade humana.
O ? discurso de circunstância? é o tipo das coisas que se dizem porque é preciso dizê-las, das coisas que só se pensam literariamente, gastando com elas aquela eloqüência de que a verdadeira eloqüência zomba. Por isso o discurso de circunstância muito freqüentemente não passa de discurso de ocasião. Pode acontecer que seja genial, e temos exemplos de sobra em Demóstenes e Bossuet; mas só o é, se a circunstância extrai do nosso íntimo o que de lá brotaria igualmente por si, o que se prende com as opiniões pessoais, com o objeto das meditações habituais.
A virtude da palavra, falada ou escrita, é a abnegação e a retidão: abnegação que afasta a personalidade, quando se trata de intercâmbio entre a verdade que fala dentro e a alma que escuta: retidão que expõe sinceramente o que foi revelado na inspiração e não lhe acrescenta palavras inúteis. ? Olha para o teu coração e escreve? , diz Sidney. Quem assim escreve, sem orgulho nem artifício, como para si só, fala, de fato, para a humanidade, se é que possui o talento de pronunciar uma palavra verídica, na qual a humanidade se possa reconhecer como sua inspiradora. A vida reconhece a vida. Se me contento com entregar ao próximo um pedaço de papel impresso, talvez o próximo lance um olhar de curiosidade, mas depressa se desfará dele; se, porém, sou árvore que oferece folhas e frutos suculentos, se me dou com plenitude, então convencerei e, como Péricles, deixarei o dardo cravado nas almas. Para obedecer às leis do pensamento tenho de me mostrar perto das coisas ou, antes, no íntimo delas, porque pensar é conceber o que é, e escrever verdade, ou por outra escrever de acordo com o pensamento, é revelar o que é, e não enfiar frases. Por isso o segredo de escrever consiste em colocar-se ardentemente diante das coisas, até que elas vos falem e determinem os termos que as devem exprimir.
O discurso deve corresponder à verdade da vida. O ouvinte é homem; logo o discursador não deve ser sombra. O ouvinte mostra-nos uma alma que quer ser curada ou iluminada: não lhe propineis só palavras. Enquanto desenrolais períodos, olhai para fora e para dentro de vós e procurai sentir a correspondência entre a vossa personalidade e a de quem vos escuta. A verdade do estilo afasta o molde. Chamo molde a uma verdade antiga, a uma fórmula que passou para o uso comum, a um lote de expressões outrora novas e que já o não são por terem perdido o contacto com a realidade donde nasceram, por flutuarem no ar, vãos ouropéis que tomam o lugar do autêntico ouro, o lugar de transcrição direta e imediata da idéia. Como observa Paulo Valéry, o automatismo gasta as línguas. Para viver, acrescenta o mesmo autor, temos de utilizar sempre a sintaxe ? em plena consciência? , aplicando-nos a articular com vigilância todos os elementos, evitando certos efeitos que espontaneamente se ingerem esperando a vez de se fazerem valer. Semelhante pretensão é o motivo por que devemos apartar esses parasitas, esses intrusos, esses maçadores. O estilo superior consiste em descobrir os laços essenciais entre os elementos do pensamento, e na arte de os exprimir com exclusão de qualquer balbucio acessório. ? Escrever como o orvalho se deposita sobre a folha e as estalactites se suspendem do teto das grutas, Como a carne deriva do sangue, como a fibra lenhosa se forma da seiva? (1): eis o ideal. A pessoa orgulhosa e perturbadora estará ausente de semelhante discurso; mas a personalidade da expressão só ganhará em nitidez e relevo. O que sai de mim sem mim é necessariamente semelhante a mim. O meu estilo é o meu rosto. O rosto tira da espécie os seus caracteres gerais, mas ostenta individualidade empolgante e incomunicável; é único em toda a terra e em todos os séculos; daí vem, em parte, o interesse do retrato. Ora o nosso espírito é decerto muito mais original do que o rosto; mas ocultamo-lo por detrás das generalidades adquiridas, das frases tradicionais, das alianças verbais que só representam velhos hábitos em vez de representarem amor. Mostrá-lo tal qual é, apoiando-nos nas aquisições que a todos pertencem, mas sem nos esquecermos de nós, suscitará interesse inesgotável, será a arte.
O estilo, que convém a um pensamento, é como o corpo que pertence à alma, como a planta que provém da semente: tem arquitetura peculiar. Imitar é alienar o pensamento; escrever sem caráter é declará-lo vago ou pueril. Nunca se deve escrever ?à maneira de...? , nem mesmo à maneira de si próprio. Para quê ter maneira? A verdade não a tem afirma-se sempre nova. O som da verdade tem de ser pessoal a cada um dos instrumentos. ? Os homens verdadeiramente superiores, escreve Júlio Lachelier, foram todos originais, embora o não tivessem pretendido nem se tivessem julgado tais; pelo contrário, procurando fazer das suas palavras e dos seus atos a expressão adequada da razão, encontraram eles a forma particular de a exprimir.? Todo o instrumento tem timbre. Se a maneira é afetação, a originalidade verdadeira é fato de verdade que, em vez de enfraquecer, reforça a impressão que o leitor, por seu turno, receberá. Não proscrevemos o sentimento pessoal que tudo renova e glorifica, mas sim a vontade própria contrária ao reino da verdade. Daí brota a simplicidade. Os floreados constituem ofensa para o pensamento, a não ser que se empreguem como simples expediente para encobrir o vácuo da mentalidade do escritor. No real não há floreados; só há necessidades orgânicas. Não quer dizer que não haja na natureza nada de brilhante; mas nela o brilhante é também orgânico, sustentado por substruções que nunca falham.
Para a natureza, a flor é tão grave como o fruto, e a folhagem tão grave como o ramo; a árvore, que se firma na raiz, não faz mais do que manifestar o germe onde se esconde a idéia da espécie. Ora, o estilo, quando é de mão de mestre, imita as criações naturais. Uma frase, um trecho escrito devem ser como ramo vivo, como os filamentos da raiz, como a árvore. Nada de mais, nada ao lado, tudo na curva pura que vai do germe ao germe, do germe desabrochado no escritor ao germe que deve desabrochar no leitor e propagar a verdade ou a bondade humana. O estilo não é um fim; desvia-o e avilta-o o escritor que faz estilo só pelo estilo. Amesquinha a verdade quem só se apega à ? forma? , quem só é rimador em vez de ser poeta, estilista em vez de escritor. Quem possuir o gênio do estilo, deve levá-lo à perfeição, que é o direito de quanto existe. Todo escritor anseia ser mestre no estilo, como o ferreiro é mestre na forja. Ora, qual o ferreiro que se diverte em tornear volutas por prazer? O estilo exclui a inutilidade; é economia no seio da riqueza; gasta o que é preciso, poupa aqui, prodiga ali para a glória da verdade. O seu papel não é brilhar, mas fazer aparecer: quando ele se apega, é que a sua glória reluz. ? O belo corta o supérfluo? , dizia Miguel Angelo, e Delacroix releva neste artista ? os soberbos embutidos, as faces simples, os narizes sem minudências? . Mas nessa simplicidade não deve passar despercebida a firmeza de contornos, como em Miguel Angelo, em Leonardo e, sobretudo, em Velasquez, ao contrário do que sucede v. g. em Van Dyck, o que é ainda uma lição. Uma vez que determinastes um pensamento ou sentimento, expressai-o de sorte que todos vos compreendam, como convém a um homem que fala a outros homens e procura atingir neles o que direta ou indiretamente é órgão de verdade. ?Um estilo completo é o que alcança todas as almas e todas as faculdades das almas? (1).
Não sejais escravos da moda. Dai água de nascente, não drogas de farmácia. Muitos escritores, hoje, criam sistemas: ora um sistema é algo do artificial e o artificial ofende a beleza. Cultivai a arte da omissão, da eliminação; da simplificação: eis o segredo da força, que os mestres não se cansam de repetir, como S. João Evangelista não se fartava de incular: ?Amai-vos uns aos outros? . A lei e os profetas, em matéria de estilo, é a inocente nudez que revela o esplendor das formas vivas: pensamento, realidade, criações e manifestações do Verbo.
Infelizmente, é rara a inocência do espírito; quando existe, alia-se por vezes à nulidade. Por isso, só duas espécies de espíritos parecem predispostos para a simplicidade: os de pequena envergadura e os gênios; os restantes são obrigados a adquiri-la laboriosamente; incomoda-os a própria riqueza e não sabem reduzir-se.( 1) Emerson. Autobiographie, Edit. Régis Michaud, pag. 640, Paris, Colin.
A Vida Intelectual - Antonin-Gilbert Sertillanges
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